Mudança radical

Engraçado como começar a conversar sobre um tema faz surgir mil conjecturas.
Hoje estava na dentista (uma nikkei) e ela me falou que esteve no Japão a passeio uma vez por duas semanas e ficou impressionada como as pessoas trabalham lá, como é pesada da vida.
Eu ri. Claro, com educação, mas sorri porque é o conceito geral das pessoas sobre os parentes que moram aí. E não é mentira, pelo contrário. É a mais pura verdade.
Comentei com ela algo que achei válido registrar aqui: que os dekasseguis sofrem não só com a distância do país de origem e a carga de trabalho excessiva, sofrem é com a perda do status. Veja, a imensa maioria de nós, que fomos ao Japão como dekasseguis, era de classe média, pelo menos da classe C. Muitos jovens classe B+ mesmo, os famosos "filhinhos de papai" - conheci muitos deles lá. Por conta disto, quem foi lá deixou de ser classe média, lá no Japão foi reduzido a classe C- ou D, se formos considerar não o salário, mas sim as condições gerais de vida, como moradia, tranporte, tipo de trabalho.
Aqui muitos de nós nunca pensou como era o cotidiano de um operário, de alguém que vive na classe social do operariado, de quem faz basicamente trabalho braçal, porque saímos de famílias onde tínhamos alguém para fazer os trabalhos para nós.
Aí eu acho que se mostra a diferença da capacidade de adaptação de alguns e a incapacidade de outros: quem aqui já fazia um trabalho mais pesado (por exemplo, quem era mecânico de automóveis) não sentiu tanta diferença na rotina pesada, no esforço físico e deu um jeito na moradia -ou aprendeu a conviver com ela. Mas quem saiu de um "trabalho de escritório" aqui no Brasil direto para uma fábrica japonesa, sentiu -e muito.
Eu saí da redação de um jornal onde eu ficava sentada (a tia do café trazia o café na nossa mesa) para uma fábrica de automóveis, a Suzuki de Kosai. Nas primeiras semanas, todo dia parecia que eu tinha levado uma surra e eu cheirava a Salompas (gel e spray para tirar dores musculares, como Gelol) o tempo todo. E eu ainda calculava quanto uma mulher ganhava (bem menos que os homens) e ficava com raiva de ter largado meu salário, porque a troca não era financeiramente tão compensadora. Mas depois me ajustei, me apaixonei pelo Nihon, acabei indo para o jornal de brasileiros e acabei vendo que valeu a pena. Mas não tenho certeza se achei isto porque caí na real ou se foi porque eu voltei ao meu status quando fui para o jornal.
Enfim, quando alguém considera a hipótese de ir para o Japão ser dekassegui deve considerar também que deixará de ser o que era aqui no Brasil (independente do que era, de onde veio, filho de quem era) para ser apenas mais um operário estrangeiro temporário numa fábrica japonesa, num país que viveu com um sistema de castas rigorosíssimo por milênios e que apesar de ter saído dele há algumas décadas, ainda classifica muito as pessoas pelo que elas fazem.
No Japão antigo, era a profissão que definia o futuro ou as chances de futuro das pessoas, não sua real capacidade, aptidão ou vontade pessoal. A pessoa nascia e morria a mesma coisa: nobre ou samurai, proprietário de terras, artesão, mercador (este foi uma novidade do período Tokugawa, veio na mesma época que a burguesia européia), religioso. E quem tinha a infelicidade de herdar dos pais uma profissão ruim, seria um pária da sociedade para sempre, como acontecia com os etas (maculados) ou hinin (não-humanos). Os hinin reuniam gente do mundo do espetáculo, carcereiros, carrascos, etc. Eta denominava os que tinham profissão ligada ao abate de animais. Crê-se que a origem deste preconceito se deve ao xintoísmo e budismo, que consideravam mácula todo trabalho ligado à morte e ao sangue.
Eu lembro de ter uma passagem assim no livro Xogum de James Clavell em que um dos empregados que serviam ao holandês foi obrigado pelo patrão a limpar uma caça (uma ave que ele tinha caçado). O empregado obedecia ao mestre mas depois se matava para expiar o erro e evitar a queda. Radical é pouco!