Uto, a primeira brasileira de olhos puxados

Concebida no Japão e nascida no Brasil, Uto Kinjo viveu desde cedo os sacrifícios dos imigrantes japoneses

Lenita Outsuka, especial para o Jornal da Tarde

SÃO PAULO - Em 17 de junho de 1908, o Kasato Maru chegou ao porto de Santos. Mas era noite e os cerca de 800 japoneses a bordo tiveram de esperar o dia amanhecer para desembarcar. Da amurada do navio, a jovem Kame viu fogos de artifício emimigra terra e pensou que os brasileiros faziam festa pela chegada dos imigrantes. Só mais tarde descobriu que foguetório, nos junhos brasileiros, é coisa normal...

Kame e Ushisuke Miadaira, marido e mulher, também não sabiam que a família iria crescer em breve e que seria deles a primeira nissei brasileira: Uto nasceu em 28 de novembro de 1908.

Concebida no Japão e nascida no Brasil, Uto – que mais tarde viraria Bartira – não conheceu as privações de 52 dias no mar. Mas viveu desde cedo os sacrifícios dos imigrantes: três dias depois de dar à luz, Kame voltou ao trabalho na lavoura, na Fazenda Floresta, em Itu, para onde foram enviadas outras 23 famílias, a maioria proveniente da ilha de Okinawa, que viajaram no Kasato Maru.

A história dos Miadaira foi resgatada pela neta de Uto, a jornalista Leda Márcia Arashiro. Imbuída do espírito das ne-san (irmã mais velha, aquela que assume a família na ausência da matriarca), ela decidiu contar aos irmãos e primos a história da família, que a maioria dos descendentes desconhecia. “Não pensei em escrever um livro”, revela. Mas não descarta a possibilidade. Afinal, a vida dos Miadaira tem inúmeros pontos em comum com a de outras famílias imigrantes que queriam realizar um sonho no Brasil. E eles conseguiram.

Leda Márcia conta que começou a pesquisar o assunto há muito tempo. No papel, a história começou a tomar forma em 2003. O interesse veio da infância: “Minha mãe trabalhava o dia inteiro e eu passava o dia com minha avó. Ela contava muitas histórias e, como não sabia ler em português, pedia para eu ler notícias de jornal para ela.”

Uto ganhou o sobrenome Kinjo em 1926,aos 18 anos, quando casou com Kosei, jovem culto e apaixonado pelas letras, recém-chegado do Japão. Um achado, na época. Os imigrantes vinham com a família, geralmente casais jovens com filhos pequenos, e era raro um rapaz solteiro disposto a casar com uma brasileira. Os Miadaira, na época, já tinham feito fortuna, graças a uma alta no preço do arroz e às plantações de banana que iniciaram em Cedro, subdistrito de Juquiá – é curioso acompanhar os deslocamentos dos okinawanos pelo interior de São Paulo: de Itu foram para Santos e ajudaram a construir a ferrovia que atravessa o Vale do Ribeira. Isso explica a grande quantidade de descendentes nipônicos na região. E foram os okinawanos, também, que introduziram o cultivo da banana na região.

Mas Uto e Kosei não ficaram em Cedro. Dentro da tradição japonesa, o ni-san (o filho primogênito) herda os negócios da família e fica responsável pelo bem-estar dos pais. E Uto, apesar de ser a filha mais velha, era apenas uma mulher. E não teria parte na herança.

O casal foi plantar bananas em Alecrim, em terras arrendadas. Tempos difíceis. “No fundão do Vale do Ribeira, sem luz, com a casa sujeita a inundações, trabalhando o dia inteiro, a 12 quilômetros da estrada de ferro que levava a Santos, ponto mais próximo da civilização”, descreve Celso Kinjo, o filho mais novo do casal. Essa luta se estendeu até 1936, quando a família, agora com três filhos (Luzia, Laura e Armando), foi cuidar de um entreposto de distribuição de bananas em Santos. Mais três anos e todos vieram para São Paulo, para se instalar na Vila Votorantim, uma rua em forma de ferradura e que começava e terminava na rua Barão de Duprat, na região do Mercado Central. Ali nasceram Araci, Humberto e Celso.

As lembranças de Leda Márcia com o avó são desse período na Vila Votorantim. Os okinawanos do interior queriam que os filhos estudassem, mas nem sempre havia escolas onde moravam. Então, mandavam os filhos para a casa dos Kinjo. Uto, sem nenhuma ajuda financeira, acolhia, alimentava, cuidava e sustentava todos – e todos permaneciam por anos a fio, até completar os estudos. A neta conta que conheceu muitos “tios” que nem faziam parte da família. As filhas, já crescidas, ajudavam. E ainda sobrava tempo para fazer amizades e aprender novas receitas.

Cozinheira de mão cheia, Uto preparava excelentes pratos japoneses. Mas fazia também charutinhos de uva, esfilhas, feijoada, paella... A Vila Votorantim reunia imigrantes das mais variadas nacionalidades e as mulheres trocavam receitas, ingredientes e confidências. Nesse período, adotou o nome de Bartira – explicou à neta que tinha gostado da história desse nome, mas Leda Márcia nunca soube se era a história da índia Bartira, a mulher de João Ramalho, português que viveu com o índios Guaianá na região de São Vicente.

A avó, para Leda Márcia, era uma mulher forte, batalhadora. E alegre, sempre disposta a contar histórias. Interessada, informada: ouvia rádio e sempre pedia para a neta ler os jornais para ela. Uto Miadaira faleceu em 16 de fevereiro deste ano. Faltou muito pouco para ela festejar o centenário, junto com o centenário da imigração.